Em 1900 não existia uma única nação em que todos os adultos (homens e mulheres) tivessem direito ao voto. Hoje 62% dos países do mundo se classificam como democracias e escolhem seus governantes em eleições mais ou menos livres. Como foi possível mudança tão radical?
Ora, como a democracia virou fonte de legitimidade, até mesmo ditadores - como Robert Mugabe no Zimbábue ou Hosni Mubarak no Egito - dedicam esforço e recursos na organização de eleições nacionais. A democracia eleitoral está em ascensão, mas o mesmo não acontece com a liberdade e os direitos civis.
Reduzir a democracia a eleições tem conseqüências. Pan Wei - uma estrela ascendente na Universidade de Pequim - diz que a China, sob um regime autocrático, vem se tornando mais aberta e liberal do que muitos países classificados como democracias. Lá, progressos na proteção de direitos individuais são mais visíveis do que na Rússia ou na Venezuela, considerados países democráticos.
Wei argumenta que adotar eleições para escolher o governo chinês não soluciona os problemas que hoje atormentam seu país - a corrupção da elite política e o fosso crescente entre pobres e ricos. Ao contrário, diz. Não falta gente rica interessada em eleger políticos em troca de favores governamentais.
Seria difícil discordar dele quando afirma que os benefícios da democracia não se confundem com os derivados da observância de leis eficientes e justas. Democracia eleitoral e proteção das liberdades individuais não são o mesmo fenômeno. A liberdade exige mais do que eleições, porque requer o respeito a instituições que defendem a dignidade do indivíduo e o protegem da violência do Estado, da igreja ou da própria sociedade.
Imagine a possibilidade de eleições livres no Egito colocarem no governo uma teocracia fundamentalista. A população sofreria coerções à liberdade ainda mais graves que as do regime de Mubarak. Além disso, não faltam governantes eleitos pela maioria da população que ignoram a liberdade de imprensa e os limites constitucionais à rotatividade do poder. Hugo Chávez é um exemplo gritante.
Mas Pan Wei vai além. Argumenta que os países em desenvolvimento erram ao adotar a democracia eleitoral sem dispor de instituições capazes de fazer os poderosos cumprirem a lei. Sua desconstrução do mito democrático pretende mostrar que, sem um regime legal, que imponha de fato limites ao poder e à corrupção, eleições apenas promovem os populistas. Por isso, o modelo preferido pelo governo chinês é o de Cingapura, que contrapõe as virtudes asiáticas - ordem, disciplina, responsabilidade, trabalho e poupança - aos pecados ocidentais - auto-indulgência, preguiça, desrespeito à autoridade, educação inferior e consumismo.
O caminho de Cingapura e Hong Kong foi criar um sistema de leis e pô-lo em prática. O crescimento econômico produziu um Produto Interno Bruto (PIB) maior e um aumento do bem-estar que abriram espaço para reformas, mercados competitivos e maior transparência na gestão do governo. Por isso o crescimento asiático, que se fez acompanhar de mudanças na gestão pública e na garantia de direitos individuais, parece demonstrar que a modernização industrial facilita a combinação de valores orientais e ocidentais.
Por outro lado, os países que abraçaram a democracia eleitoral sem criar os fundamentos legais e as garantias necessárias ao seu bom funcionamento acabaram caindo nas mãos de autocratas. A Rússia serve de exemplo. Os indicadores sociais despencaram depois da pilhagem das sobras do antigo regime na liquidação em massa das empresas do governo. Em seguida, o país (embora tido como uma democracia) entronizou um Estado que viola os direitos humanos e perpetua o poder de Putin.
O que dizer do sistema democrático brasileiro? Embora longe da perfeição, ele nos parece garantir, pelo menos, que não há mal que dure para sempre, porque o mandato de todo e qualquer governante tem um número limitado de anos. A garantia da rotatividade do poder nos protege, mas não impede que nos perguntemos o que nos falta.
Alan Blinder - professor da Universidade de Princeton que serviu ao governo americano na Casa Branca e no Federal Reserve (Fed) - observou que as questões eleitorais de curto prazo dominam a política econômica na Casa Branca, enquanto o Fed, ao tomar decisões de política monetária, considera os méritos sociais e econômicos de longo prazo. A separação das decisões do Fed de ponderações políticas eleitoreiras ocorre por três motivos: a política monetária só afeta a economia com uma defasagem de tempo; ela exige conhecimentos técnicos no manejo das taxas de juros; e requer paciência e mão firme, pois, na luta contra a inflação, a política monetária fere interesses e exige sacrifícios antes que seus benefícios se materializem. Portanto, ela só pode ser eficiente longe do ambiente dominado por considerações políticas de curto prazo.
O mesmo argumento a favor da autonomia se aplica a áreas do governo em que as decisões têm conseqüências duradouras e exigem considerações técnicas. Um exemplo dos males causados pela falta de autonomia das agências reguladoras no Brasil é o caso Varig, que indica a ocorrência de intromissões criminosas.
Caberia ainda considerar que o sistema tributário brasileiro se transformou num cipoal intricado e ineficiente em conseqüência da política democrática. Pode-se argumentar que uma agência afastada dos interesses políticos imediatos poderia criar um sistema mais simples e transparente.
Doce aspiração. Ela é inconcebível num país onde, ainda no exercício de seu mandato, o presidente do BC se permite fazer projetos políticos. Pode fazê-los, porque é ministro do presidente. Mas tamanha falta de recato reforça o argumento de Blinder a favor de um banco central sem subordinação política, com um mandato que não coincida com o do presidente da República.
Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV
Site: www.elianacardoso.com
Estadão
Nenhum comentário:
Postar um comentário