OGLOBO:
Na contramão
Com a crise política deflagrada pelas denúncias de um aliado — o deputado petebista Roberto Jefferson — o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ampliou a distância que já mantinha da imprensa. Antes do escândalo, havia concedido uma entrevista coletiva, mas sem direito a réplicas. A descoberta do propinoduto do PT o fez recuar ainda mais. Optou por pronunciamentos inflamados proferidos de palanques quase eleitorais e por frases ditas no exterior, em corredores e saguões de hotéis, enquanto transitava entre reuniões protocolares.
Fez, ainda, um pedido formal de desculpas à nação, quando se declarou traído — mas sem revelar o agente da traição. Salvo a desastrada, mas reveladora, entrevista dada a uma freelancer brasileira em Paris, em que procurou desqualificar o crime de caixa dois político e eleitoral, o presidente Lula ainda não havia se colocado à frente de câmeras de TV para responder a perguntas.
A oportunidade surgiu com a comemoração pelo milésimo programa “Roda Viva”, da TV Cultura. Gravada a partir do fim da manhã de segunda-feira e levada ao ar à noite, a minicoletiva de Lula, como na entrevista parisiense, gerou um resultado desastroso para ele. E, como daquela vez, também não deixou de ser uma entrevista reveladora.
Lula aproveitou a oportunidade para tentar reparar o grave erro de Paris, quando curiosamente antecipou a linha de defesa do companheiro Delúbio Soares e do financista e traficante de interesses Marcos Valério que eles adotariam dias depois ao depor na CPI dos Correios. Agora, o presidente voltou atrás e disse considerar inaceitável o caixa dois na política. Poderia também ter aproveitado para ser mais preciso sobre quem o traiu — embora a referência feita a companheiros que adotaram práticas que “não se coadunam com a história do PT” já tenha sido um avanço.
Mas, como se tivesse entrado numa máquina do tempo, Lula retornou ao passado para rejeitar a existência do mensalão, termo usado por Jefferson nas denúncias e espertamente tomado ao pé da letra por petistas e aliados. Ao frisar que até agora não ficou provada a existência do tal mensalão, o presidente exumou uma discussão já soterrada pelas inúmeras provas e evidências surgidas no andamento das investigações.
E elas indicam o trânsito farto de milhões de reais em dinheiro ilegal através do propinoduto criado por Marcos Valério e administrado, entre outros, pelo companheiro Delúbio Soares, em direção ao bolso de políticos e ao caixa dois de legendas coligadas. Não se duvida mais já há algum tempo que esse dinheiro atraiu aliados na campanha de 2002, financiou gastos eleitorais em 2002 e 2004, comprou apoios em votações importantes no Congresso e azeitou trocas de legendas. O presidente repele — verbo da moda — que também sua campanha tenha sido abastecida por caixa dois, apesar de haver testemunhos (Valdemar Costa Neto) e fatos (pagamento a Duda Mendonça no exterior) que apontem nessa direção.
Seja como for, perdeu importância a questão de saber se o propinoduto abastecia as finanças dos beneficiários mensalmente. Bastaria uma única transferência de dinheiro ilegal para configurar crime.
Na entrevista, Lula assumiu a postura de militante do PT no poder, sem qualquer preocupação em manter-se à margem da crise e preservar-se na condição de presidente da República. Assim, mesmo considerando José Dirceu condenado, adotou o discurso de defesa do ex-ministro, autodeclarado vítima de perseguição política pela biografia e a história que tem, interpretação benevolente compartilhada por Lula. Escapa à compreensão do presidente aquilo que seu ex-companheiro Chico Alencar, deputado recém-chegado ao PSOL, bem resumiu: Dirceu é alvejado por causa dessa mesma biografia, pois seria impossível alguém como ele nada saber do que ocorria no PT.
Reapareceu na entrevista o Lula militante que, em reunião recente com a bancada do partido, procurou defender todos da acusação de corrupção. Ali, mais uma vez, pairava a idéia inaceitável de que há crimes maiores e menores quando se manipula dinheiro sujo na política.
Não faltou, também, a repetição do bordão de que “é preciso tudo apurar”, entremeado de acusações de “denuncismo” contra as oposições e as CPIs — o que não deixa de ser um prejulgamento que inocenta os atingidos.
O pedido repetitivo de provas, outra tática petista, denota a intenção de desqualificar as evidências e os depoimentos já colhidos, com valor não apenas político mas também jurídico.
O presidente Lula entrou em rota de colisão com fatos apurados e indiscutíveis, e dessa forma voltou ao centro da crise.
Nenhum comentário:
Postar um comentário